Bernd Nitzschke
  A interpretação política da psicanálise por Wilhelm Reich
ou
Resistência e acomodação dos psicanalistas
na época dos nazismo

  Resumo

  The one duty we owe to history is to rewrite it.

  Oscar Wilde

   

A transformação de Wilhelm Reich em psicanalista politicamente engajado durante a década de 1920 é comentada à base de fatos históricos e biográficos. Diante desse pano de fundo é mostrada que Reich defendeu da aplicação da psicanálise como instrumento de esclarecimento em confrontos políticos. Discute-se o livro “Psicologia de massa do fascismo” (editado em 1933 pelo próprio autor) dentro do contexto da tomada do poder pelos nazistas. Depois da publicação da “Psicologia de massa”, Reich foi expulso do partido comunista (KP). Pouco tempo antes já tinha sido desligado da Sociedade Psicanalítica Alemã (DPG), a pedido de Freud. São abordados e esclarecidos os motivos dessa desfiliação que viria a ser confirmado oficialmente, em 1934, pela exclusão de Reich da União Psicanalítica Internacional (IPV). O “caso” de Reich permite demonstrar as diligências de acomodação realizadas pela maioria dos representantes (alemães e internacionais) da psicanálise durante a era do nazismo. Essa atitude de transigência acabou levando à autodestruição da entidade psicanalítica na Alemanha de Hitler. Terminada a Segunda Guerra Mundial, a exclusão de Reich foi ignorada ou até negada por grande parte da historiografia psicanalítica. Por isso, a controvérsia em torno do engajamento político de Reich continua com a sua brisância até hoje.

   

O psicanalista Wilhelm Reich
“O caráter masoquista” (1932a)

Wilhelm Reich faz parte do rol daqueles intelectuais do século XX que tiveram a sua biografia marcada exemplarmente pelas controvérsias políticas de sua época. Nascido em 24 de março de 1897 em Dobrzania/Galícia (região da Europa oriental que, naquela época, fazia parte do império dos Habsburgos), Reich morreu sessenta anos depois, em 3 de novembro de 1957, num presídio em Lewisburg/Pennsylvania (EUA) onde estava preso por desacato ao tribunal que tinha interditado a comercialização de ‘acumuladores de energia orgônica’. Esses aparelhos foram a última prova da teoria em que Reich formulara a unidade das energias organísmica e cósmica. Mas não falarei aqui do ‘teorizador do orgônio’ e, sim, de um Reich engajado politicamente que tentou conciliar a psicanálise e o marxismo e, a partir desse posicionamento, conclamou à resistência contra o fascismo hitlerista.

  Ainda no seu tempo de estudante de medicina, em 1920, Wilhelm Reich filiou-se à União Psicanalítica de Viena (WPV). Dois anos depois começou a trabalhar no Ambulatório Psicanalítico, uma policlínica em que eram atendidos pacientes sem recursos. Em 1924, Reich tornou-se coordenador do Seminário Técnico da WPV, um posto importante porque nessa seção eram discutidas as questões centrais da técnica de tratamento bem como a formação dos psicanalistas. O engajamento político de Reich teve início em 1927, depois de um levante dos operários em Viena. Ingressou no Partido Socialista, em 1928 fundou, juntamente com Marie Frischauf-Pappenheim,  a Sociedade Socialista para Orientação Sexual e Pesquisa Sexual que teve como meta realizar um trabalho de esclarecimento entre os jovens, as mulheres e os operários. No final da década de 1920, Reich fez uma viagem à União Soviética (Reich, 1929a) para intervir numa disputa em torno da psicanálise (cf. Reich, 1929b) que tinha sido atacada dentro do partido por comunistas ortodoxos que viam no ‘Freudismo’ uma ideologia ‘burguesa’ (Nitzschke, 1989). No começo de 1930, Reich ingressou no Partido Comunista. No final de 1930 informou Freud de sua intenção de mudar-se para Berlim, porque nessa cidade a luta entre o socialismo e a reação (fascismo) se mostrava especialmente virulenta. Sabendo da opção política de Reich, Freud declarou nessa oportunidade: ”Caro Doutor, em nossas conversações chegamos à conclusão de que a sua mudança temporária para Berlim não deverá acarretar a perda de seus postos em Viena, acho importante salientar isso.” (Carta de Freud, de 10 de outubro de 1930, cit. em Fallend, 1988, p. 201)

  Em maio de 1931, Reich mudou-se para Berlim, onde ingressou no KPD (Partido Comunista Alemão) em cujo nome participou imediatamente da fundação da União Única pela Reforma Sexual e pela Assistência à Maternidade Proletária. Em dezembro de 1931, Reich filiou-se à Sociedade Psicanalítica Alemã (DPG). Em 19 de dezembro proferiu a sua palestra inaugural no Instituto de Berlim sobre A economia sexual do caráter masoquista. Foi essa palestra o ponto de partida da controvérsia com Freud que terminaria com a exclusão de Reich das organizações psicanalíticas. Em seu artigo sobre o masoquismo (Reich, 1932a), Reich contestara a teoria da pulsão de morte que Freud defendia desde 19920. Reportando-se à teoria de pulsão e cultura que Freud tinha defendido anteriormente e com a qual Reich concordava tanto do ponto de vista clínico-teórico quanto do político-prático, formulou a seguinte objeção: “A formula original das neuroses que diz: a neurose nasce de um conflito entre a pretensão da pulsão sexual e o medo da ameaça de castigo real da parte da sociedade patriarcal pela atividade sexual, tem a sua razão de ser. Mas isso implica também perspectivas totalmente diferentes [daquelas tiradas da teoria da pulsão de morte, B. N.] para as conclusões a serem tiradas da teoria das neuroses. O sofrimento vem da sociedade, e temos toda a razão de perguntar, por que ela produz sofrimento, quem está interessado em que ela o faça. Ainda precisa ser provado que os ‘impulsos destrutivos não superáveis’, aos quais se atribui o sofrimento humano, não são de origem biológica e, sim, social, que é a inibição da sexualidade levada a efeito pela educação autoritária que faz da agressividade uma pretensão insuperável, uma vez que a energia sexual inibida se transforma em destrutividade. E os fatos de nossa vida cultural que se parecem com autodestruição na verdade não são fenômenos de ‘pulsões de auto-aniquilamento’ e, sim, de intenções   destrutivas bem reais de uma camada da sociedade de direito privado interessada na repressão da vida sexual.” (1932a, p. 349s)

  Poucos dias após a palestra inaugural de Reich em Berlim, Freud fez, em 1o de janeiro de 1932, a seguinte anotação em seu diário: “Providências contra Reich” (1992, p. 267). Pouco tempo depois escreveu uma carta ao Presidente da DPG em Berlim, Max Eitingon, em que Freud denunciava que Reich e Otto Fenichel (companheiro político de Reich, cf. Fallend 2002) estavam com a intenção de “abusar de revistas psicanalíticas para fins de propaganda bolchev.[ique]” (carta inédita, de 9 de janeiro de 1932). O motivo desse alerta era a intenção de Reich de publicar a palestra sobre masoquismo na Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, coordenada por Fenichel. Pouco tempo depois, Fenichel foi destituído de sua função de redator da revista. Numa carta circular enviada em 25 de novembro de 1940 aos freudianos de esquerda ligados a ele e que, como ele próprio, estavam vivendo no exílio, Fenichel faz um retrospecto: a tentativa de Freud de permitir a publicação da palestra sobre masoquismo só se fosse acompanhada de uma nota de censura (texto da nota de rodapé em Nitzschke, 2002, p. 123) teria sido o “motivo” para a convocação “dos analistas ‘de esquerda’ de Berlim, para discutir com eles o que deveria ser feito”. Foi essa a reunião informal de fundação do grupo de psicanalistas de orientação marxista dentro da União Psicanalítica Internacional (IPV) que, nos anos seguintes, se opôs à política de acomodação com o regime nazista praticada pelos representantes da IPV, ao lado da nova diretoria da DPG que assumiu o mandado em novembro de 1933. Fenichel continua: “Reunimo-nos na casa de Reich para discutir questões analítico-marxistas (...). Esses primeiros tempos de nosso trabalho terminaram com a tomada do poder por Hitler. Os colegas de Berlim se dispersaram pelo mundo todo. Tínhamos saudades uns dos outros e, ao mesmo tempo, (...) a impressão de que era mais necessário do que nunca exercer alguma influência sobre o movimento psicanalítico ameaçado pelo fascismo também em seu interior (...).” (1998, v. II, p. 1383s)

 

  Wilhelm Reich, o crítico social
“A psicologia de massa do fascismo”

  Em 28 de junho de 1932, mais ou menos meio ano após o início da controvérsia com Freud e meio ano antes da tomada do poder por Hitler, Reich proferiu uma segunda palestra no Instituto de Berlim, essa vez tendo como tema Problemas de psicologia de massa dentro da crise econômica. Na publicação Korrespondenzblatt da IPV, a palestra é descrita por Felix Boehm nos seguintes termos: “No exemplo do movimento nacional-socialista é demonstrado que a situação familiar da pequena burguesia faz com que a sua radicalização seja desviada para a reação política em lugar da revolução. O nacional-socialismo lota a rebelião da classe média de conteúdos reacionários cuja aceitação é facilitada especialmente pela antiga situação social e familiar. A análise do teor efetivo da teoria racial mostra que o termo ‘de raça nórdica’ é equiparado a puro, isto é, assexual, enquanto o termo ‘de raça alienígena’ é associado a sensualidade, a instintos baixos e animalescos” (Korrespondenzblatt, 1932, p. 559s). O relato menciona teses desenvolvidos por Reich em seu livro Psicologia de massa do fascismo, lançado em 1933 na editora Exil-Verlag, em Copenhague, em que demonstra que nem a situação de crise econômica na Alemanha nem a personalidade de Hitler fornecem elementos suficientes para entender o sucesso da propaganda nazista junto às massas (inclusive no movimento operário, uma tese que serviu de justificação definitiva para a expulsão de Reich do partido comunista). O medo da liberdade e o desejo de ter um líder autoritário que justifique ideologicamente a realização de impulsos destrutivos, na medida em que tais impulsos são dirigidos contra os ‘inimigos’ do Estado ou do ‘povo’, não foram, segundo ele, inventados por Hitler, eles já existiam antes: “Um ‘líder’ só entra na história quando a estrutura de uma personalidade de liderança encontra eco nas estruturas individuais de massa de grupos amplos” (Reich, 1933a, p. 58).

  A psicanálise individual de carateres sadomasoquistas, isto é, a análise da resistência e do caráter (cf. Reich, 1933b), da qual Reich, partindo da teoria do transtorno da potência orgástica (Reich, 1927), extraiu um tratamento psicoterápico centrado no corpo (cf. resumidamente em Geuter, Schrauth, 2002), e a análise histórico-social de Reich podem ser entendidos, portanto, em sua unidade: o sucesso dos nazistas não foi o resultado de uma psicose de massa e, sim, a conseqüência das condições sociais, para cuja criação e manutenção era necessária a socialização de carateres devidamente deformados cujo ódio de si mesmos podia ser instrumentalizado politicamente pela aplicação prática no ódio contra minorias. Essa posição científico-teórica, da qual Reich tirou as conseqüências político-práticas, era o resultado de um caminho enveredado por Reich desde 1927. Partindo da crítica da sociedade capitalista, chegou à crítica da família patriarcal e de suas práticas de socialização e educação que estão concentradas na inibição da sexualidade infantil (‘natural’, segundo Reich). Com isso, Reich dera o mote para os estudos acerca da personalidade autoritária. Por isso, já em 1934 Karl Landauer elogiou a Psicologia de massa de Reich na Zeitschrift für Sozialforschung afirmando: “Ao contrário da maioria dos psicólogos, (...) Reich não se satisfaz com chavões como desorientação das massas e psicose de massa, antes pergunta pela predisposição que existe dentro dos indivíduos de seguir as tendências do líder, a ponto de se deixar desorientar” (Landauer, 1934, p. 106). E Marx Horkheimer reconhece cedo, na Psicologia de massa de Reich, uma “continuação importante” da abordagem freudiana: “Em muitos pontos estamos de acordo com a interpretação psicológica que ele [Reich] dá a certos traços do caráter burguês” (1936, p. 224, nota 3). E Erich Fromm já tinha elogiado o livro de Reich, Irrupção da moral sexual (1932b), como “enriquecimento importante e estimulador da principiante literatura psicológico-social marxista-analítica” (1933, p. 122).

  Os próprios nazistas reconheceram em Reich o protagonista de uma psicanálise ligada ao marxismo. Em 2 de março de 1933 publicaram, por exemplo, no jornal Völkischer Beobachter uma matéria intitulada Bolchevismo ou Alemanha? no qual o nome de Reich é grafado erroneamente como “Weiss” e onde se dizia: “Um exemplo crasso (...) é o livro comunista do Dr. Wilhelm Weiss, O combate sexual da juventude [Reich, 1932c]. A juventude alemã é convocada pelos comunistas a se levantar contra todas as leis morais que são vistas apenas como uma forma de escravização do capitalismo. É um ato de sedução descarada que apela aos instintos mais baixos de jovens imaturos tentando corromper neles o senso de moral, decência e autodomínio” (cit. em Rackelmann, 1993, p. 67). Para evitar a proibição da psicanálise no Estado nazista, era necessário distanciar-se claramente dessa “porcaria judeu-marxista” (jargão nazista citado por Boehm, 1934, p. 103) que ameaçava ser equiparada à psicanálise como um todo. Portanto, era necessário distanciar-se de Reich.

  Quem tomou essa iniciativa “logo após a tomada do poder” pelos nazistas foi o presidente da DPG, Max Eitingon, que recomendou a Reich que “se abstenha de comparecer às instalações do nosso instituto para que, em caso de detenção, tal ato não ocorra em nossos recintos” (Boehm, 1934, p. 99). Reich fugiu para Viena esperando, provavelmente, encontrar naquela cidade apoio como psicanalista perseguido pelos nazistas e, possivelmente, ser reconduzido aos postos antigos, conforme Freud lhe tinha prometido três anos antes. Mas os tempos tinham mudado e, com eles, também os interesses de Freud. Agora, Freud exigiu que “Reich que passou a agitar em Viena fosse excluído. É o meu desejo por razões cient.[íficas], não me oponho quando acontece por razões políticas, ele merece qualquer papel de mártir” (carta inédita, de 17 de abril de 1933, a Eitingon). Os motivos dessa manifestação explica Anna Freud em sua carta de 27 de abril de 1933, dirigida a Ernest Jones, presidente da IPV, da seguinte maneira: “Em sua breve estada aqui, R.[eich] teve o desplante de fazer discursos políticos com viés psicológico em reuniões comunistas. Qualquer um sabe o que isso pode significar, nos dias de hoje, para a associação analítica. (...) Meu pai (...) está ansioso para se livrar de Reich como filiado, ele se sente ofendido pelo fato de a análise ser forçada a servir à política que não é o lugar dela” (Anna Freud, cit. em Friedrich, 1990, p. 164). O desejo de Freud de ver Reich afastado das agremiações psicanalíticas se realizou em duas etapas.  No verão de 1933, o nome de Reich foi excluído da lista dos membros da DPG, depois de uma reunião da diretoria mantida em sigilo; no verão de 1934, a exclusão foi confirmada oficialmente no XIII Congresso Psicanalítico Internacional realizado em Lucerna. O motivo alegado pela diretoria da IPV foi registrada por Fenichel: não foram condenadas “nem as convicções divergentes em relação a Freud (...) nem as convicções políticas” de Reich, o que houve foi um distanciamento da reivindicação de Reich de que os psicanalistas deveriam defender “com absoluta necessidade uma certa atividade política em decorrência” de sua ciência. Como não fora possível partilhar dessa posição nem participar ao “público” quais “as manifestações do psicanalista Reich que estão em acordo ou desacordo com a sua agremiação psicanalítica”, restou como única alternativa a separação de Reich (1998, v. I, p. 136).

 

  A ironia da história
A ciência ‘apolítica’

  A exclusão de Reich foi, portanto, um sinal, um sinal para o “público”, ou seja, para os novos mandatários na Alemanha. Felix Boehm, aceito por Freud como sucessor do judeu Max Eitingon no cargo de presidente da DPG sob a condição de providenciar a desfiliação de Reich da DPG, desde o verão de 1933 já estava em conversações com os novos mandatários. Para evitar a interdição da psicanálise no Estado nazista, distanciou-se de Reich, em nome de Freud, uma vez que Freud, ao contrário de Reich, entendia a psicanálise como um ciência politicamente neutra que podia ser útil a qualquer Estado (cf. Nitzschke, 1991, 1999). Em seu relatório para o presidente da IPV, Boehm escreveu: “É sabido que Reich se apresentara em público reiteradamente como comunista e psicanalista dando a entender que as suas convicções eram resultados da psicanálise. Tive que lutar contra esse preconceito” (1934, p. 103; os destaques são meus). Os nazistas entenderam o recado de que havia “dois tipos de ps.-a.” (1934, p. 105). Exigiram de Boehm que confirmasse por escrito, “num memorando dirigido ao ministério da cultura”, a posição de Freud explicada oralmente. “A essa altura dirigi-me confidencialmente a Müller-Br.[aunschweig] com o pedido de redigir o memorando (...) estávamos todos interessados em distanciar-nos claramente das convicções divulgadas por Reich em Berlim, realçando que a ps.-a. promove a índole positiva das pessoas” (1934, p. 105, os destaques são meus). O texto do memorando em que a psicanálise era apresentada como um instrumento terapêutico útil ao Estado nazista, já que por meio dela “fracotes imprestáveis” deviam ser transformados “em pessoas preparadas para a vida” (Müller-Braunschweig, 1933, p. 111s), foi submetido em 1o de outubro de 1933 por Müller-Braunschweig e Boehm ao presidente da IPV, Jones, e ao vice dele, van Ophuijsen, durante um encontro na Holanda. Depois de obtido um “consenso total” entre todos os presentes, Jones garantiu à nova direção da DPG “o mais amplo auxílio e apoio informando imediatamente Anna Freud a respeito disso” (Boehm, 1934, p. 107). Ela sabia, portanto, do memorando que pouco tempo depois, em 22 de outubro de 1933, foi publicado, numa versão com pequenos retoques estilísticos, no Reichswart, um tablóide de cunho nitidamente anti-semita, sob o título “Psicanálise e ideologia” (Müller-Braunschweig, 1933).

  Foi esta a “contribuição mais importante ao processo de alinhamento” (Friedrich, 1987, p. 211), uma contribuição que se deu no contexto imediato da exclusão de Wilhelm Reich da DPG/IPV, conforme vimos acima. Outros passos haveriam de seguir nesse caminho de autodestruição, até que, em fins de 1938, a DPG se visse forçada a dissolver-se, para continuar atuando como “Grupo de Trabalho A” no Instituto Alemão para Pesquisa Psicológica e Psicoterapia. Pelo menos a partir de 1934, ninguém podia desconhecer os sinais insofismáveis. Naquele ano realizou-se em Bad Nauheim um congresso em que deviam ser debatidos “os detalhes da expansão da especialidade psicoterápica na Alemanha”, segundo o informe de Müller-Braunschweig, publicado sem comentário crítico no Korrespondenzblatt da IPV. Os filiados da DPG são convidados, no mesmo informe, a “comparecerem em grande número” (Korrespondenzblatt, 1934, p. 414). Kurt Gauger, porém, revelou o verdadeiro objetivo da reunião de Bad Nauheim: discutir a psicoterapia ‘alemã’, isto é, a psicoterapia como política aplicada. Sob o título Psicoterapia e visão política do mundo, Gauger deixou claro que “o sentido de minha exposição é político, por isso estou me dirigindo aos senhores trajando o uniforme do soldado da política, do combatente da SA" (1934, p. 158). Depois acrescentou as palavras inequívocas: “A disciplina mais política entre todas as disciplinas (...) é a psicoterapia!” (1934, p. 168). Müller-Braunschweig retomou esse pensamento central em sua mensagem A idéia do nacional-socialismo e a psicanálise, declarando que os psicanalistas agora já “podem contribuir de modo proveitoso para a construção de uma psicoterapia alemã”, depois de o “regime nacional-socialista” ter criado as “condições” para uma DPG de “rosto realmente alemão” (1935, p. 167). Esse rosto passou a ser definitivamente “de raça pura” depois que os judeus remanescentes nas fileiras da DPG, atendendo ao desejo de seus colegas ‘arianos” e à ordem do presidente da IPV, Jones, que nessa oportunidade viera especialmente para Berlim, tinham renunciado “espontaneamente” à sua filiação à DPG. Essa renúncia fora a condição para o ingresso da DPG no Instituto Alemão de Pesquisa Psicológica e Psicoterapia, no verão de 1938. Mas, mesmo essa tropa de uma DPG ‘sem judeus’ e comprometida com Minha Luta, de Hitler, continuou filiada à IPV com status de entidade reconhecida.

  E a ironia da história? Essa ficou por conta de Wilhelm Reich que reimprimiu o artigo de Müller-Braunschweig, cujo conteúdo fora acertado com Jones e que foi publicado originalmente no Reichswart, na revista dos exilados Zeitschrift für politische Psychologie und Sexualökonomie sob o título Ciência ‘apolítica’, resguardando-o dessa maneira para a memória histórica (sobre a importância dessa reimpressão para o estudo da história da psicanálise sob o domínio de Hitler, cf. Fallend, Nitzschke, 2002a). Com as suas aspas ironizantes, Reich estigmatizou o auto-engano dos psicanalistas ‘apolíticos’ que o acusavam de ter misturado indevidamente psicanálise e política, conquanto eles próprios se submetessem às exigências do regime nazista. Em outro lugar, Reich acrescentou a essa iniciativa um comentário mais explícito: “Como membro da união psiquiátrica alemã declaro que o mencionado artigo de Müller-Braunschweig constitui uma vergonha para toda a ciência e o movimento psicanalíticos” (cit. em Fenichel, 1998, I, p. 103). Jones, o presidente da IPV, não partilhava dessa opinião. No XVI Congresso Psicanalítico Internacional em Zurique, teceu elogios a Müller-Braunschweig declarando-o um dos poucos psicanalistas alemães que, sob o domínio de Hitler, se conservou como um dos “true, real, genuine analists” (Jones, 1949, p. 186). Meio século depois, essa ironia chegou a ser superada (cf. Fallend, Nitzschke, 1998) pela observação de um historiador da entidade que afirmou: “Ao contrário de Reich”, no artigo de Müller-Braunschweig no Reichswart “a substância objetiva” da psicanálise não fora “influenciada” pela “política” (Schröter, 1998, p. 181). E ele acrescentou ainda: “Alguém poderia argumentar que Reich já tinha insistido cedo na incompatibilidade da psicanálise e do nazismo considerando qualquer concessão um ato de ‘auto-imolação inútil’ (...). Mas, o que parece ser um sinal de argúcia realística talvez não passe de coincidência” (1998, p. 182, nota 8). Coincidência ou não, Emanuel Berman, um psicanalista israelense que se empenha com denodo pela reconciliação entre israelenses e palestinos, criticou recentemente a inépcia ‘apolítica’ enraizada no ideário psicanalítico afirmando: “This view probably contributed to the determination of psychoanalysts in the past to keep their political views hidden, even to the point of not taking for several years a public position against the Nazi movement, and condemning and expelling Wilhelm Reich when he did” (2002, p. 194).

Tradução de Alfred Keller

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Dieser Beitrag ist  erschienen in: Revista Reichiana No. 13, 2004, S. 24-36.